Texto retirado do blog Almas Corsárias
BURGUESIA LARANJA
JOSÉ MARTINS.
Quem tem medo dos trabalhadores que em 28 de Setembro de 2009 ocuparam um latifúndio em Borebi, a 309 km de São Paulo, e derrubaram milhares de pés de laranja para plantar no lugar milhares de pés de feijão? Toda a massa da “sociedade civil, essa pastosa entidade do Estado democrático que engloba desde os capitalistas proprietários da Cutrale – empresa multinacional exportadora de suco de laranja, que invadiu irregularmente boa parte daquele latifúndio de propriedade da União 1 – até os mais ilustres representantes da República. O presidente da República, por exemplo, este conhecido “amigo do povo”, para quem a ação social da destruição dos pés de laranja para darem lugar à plantação de feijão não passou de “cena de vandalismo” dos seus autores e deve ser tratada como um caso de polícia 2.
CASO DE POLÍCIA OU QUESTÃO SOCIAL? – As declarações do presidente da República fizeram eco ao pensamento (e aos interesses) da burguesia agrária e por isso repercutiram com destaque tanto na grande mídia porta-voz oficial da sociedade civil (Globo, Folha, Veja...) quanto na mídia do agronegócio exportador – “O presidente Luis Inácio da Silva disse que o ato praticado por integrantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) numa plantação de laranjas da empresa Cutrale foi uma „cena de vandalismo‟. Lula disse ainda que quem descumprir leis no Brasil „pagará o preço‟. „Todo mundo sabe que sou defensor das lutas sociais nesse país e que sou defensor que o povo se manifeste. Agora, é diferente uma manifestação reivindicando alguma coisa e aquela cena de vandalismo feita [sic] na televisão‟, disse o presidente no último dia 9. Lula afirmou não concordar com a atitude do MST „porque não tem explicação para a sociedade você derrubar tantos pés de laranja apenas para demonstrar que você está reivindicando. Você podia demonstrar sem precisar destruir máquinas nem pés de laranja” 3
Tanto zelo do “amigo do povo” com a integridade do capital da Cutrale valeu uma resposta precisa dos trabalhadores: “Não destruímos nada. Retiramos os pés de laranja para garantir o plantio de feijão porque ninguém vive só de laranja” – afirmou Claudete Pereira de Souza, coordenadora do movimento” 4.
Afinal, estamos diante de um caso de polícia ou de uma questão social? De ação de um grupo isolado de vândalos fora da lei, como acusam os representantes da sociedade civil brasileira, ou de uma explosiva questão social, como demonstram os trabalhadores que ocuparam o latifúndio?
Os que advogam os acontecimentos como caso de polícia se baseiam na defesa da inviolabilidade jurídica da propriedade privada e nas correspondentes “leis do Brasil” a que se refere o presidente da República. A questão social que se manifestou em Borebi, ao contrário, é materialmente gerada como uma questão agrária: o regime capitalista de produção é incapaz de alimentar a população trabalhadora. Ela se fundamenta em determinações materiais de uso agrícola do território e geram conflitos econômicos inconciliáveis entre as classes proprietárias e a classe trabalhadora.
O mais importante é que essa questão social – ao contrário do idealismo abstrato das leis da propriedade privada e do Estado policial – pode ser concretamente verificada nas condições econômicas de produção e reprodução da população no regime capitalista. A análise econômica criteriosa da realidade social é um poderoso instrumento para se revelar o que se esconde por trás das leis da sociedade civil e da violência política do Estado democrático. A violência econômica é a mãe de todas outras violências.
O AGRONEGÓCIO É UM DESERTO DE ALIMENTOS – Como ocorre nas economias dominantes do mercado mundial (EUA, União Européia e Japão), em São Paulo – o estado mais capitalista e com as terras mais férteis do país – mais da metade do território agriculturável é ocupado pela produção de alimentos de base, certo? Errado. Erradíssimo. Mais da metade de suas terras paulistas é ocupada pela pecuária extensiva. No ano 2000, da área agriculturável total do estado de São Paulo, aproximadamente 20 milhões de hectares (ha), cerca de 10,3 milhões (51,4% da área total) são ocupados pelas pastagens 5.
Em segundo lugar, vem a cobertura florestal (3,6 milhões de ha – 18% da área total); depois a cana de açúcar (2,93 milhões ha – 14,5% da área total); em quarto lugar, a famigerada laranja (871 mil ha – 4,35% da área total); a soja (470 mil ha – 2,75% da área); café (285 mil ha – 1,42%).
Essas atividades típicas do agronegócio brasileiro – que colaboram muito pouco para a reprodução da população trabalhadora, pois não envolvem a produção de cereais – ocupam cerca de 15 milhões ha (75% da área total). Se for acrescentada a esse número a área da cobertura florestal 6 chega-se a cerca de 95% da área total. O que sobrou para as lavouras de alimentos? Milho (715 mil ha); feijão (74 mil ha); arroz (70 mil ha); mandioca (41 mil ha). Não aparece nenhuma menção á produção de trigo e outros cereais básicos 7.
A soma das terras paulistas ocupadas para a produção do milho, arroz, feijão, mandioca e hortaliças não chega a 5% da área total cultivada do estado. É praticamente a mesma área reservada só para a produção da laranja (4,35% da área total). Em outras palavras, a produção de laranja ocupa uma área semelhante a que é ocupada para produzir toda a comida básica da reprodução da população.
O feijão – que os trabalhadores queriam plantar no latifúndio da União, em Borebi – não ocupa mais que 74 mil ha – menos de 0,4% da área total e menos de 10% da área ocupada pela laranja.8
A DIALÉTICA TEM LIMITES – Para encerrar este boletim, mas não o assunto, evidentemente, uma última observação: seria curioso, se não fosse trágico, que a área ocupada pela produção de feijão em todo o estado de São Paulo é pouco mais que a área do latifúndio estatal de Borebi (50 mil ha) ocupado pelos trabalhadores por poucas horas, sendo imediatamente retirados pela polícia e jogados de volta para os cortiços e os bairros imundos das periferias das grandes cidades onde são obrigados (democraticamente, é claro) a ficar obedientemente estocados, encaixotados no imenso exército industrial de reserva global à disposição das classes socialmente responsáveis pela acumulação do capital.
Na breve ocupação do latifúndio de Borebi os trabalhadores deram uma lição de Economia Agrária para a sociedade civil brasileira: “não destruímos nada. Retiramos os pés de laranja para garantir o plantio de feijão porque ninguém vive só de laranja” nas palavras da companheira Claudete Pereira de Souza. É uma pena que os amantes das lei e da ordem (e da laranja, do boi, da cana, do etanol, da soja...) não estejam nem um pouco interessados por esse tipo de conhecimento. Ao contrário, eles mandam prender aqueles que revelam praticamente toda a miséria material e moral da sociedade civil brasileira: “Polícia deve indiciar 11 sem-terra acusados de destruir fazenda em São Paulo. O delegado Jader Biazon, que investiga a depredação da fazenda Santo Henrique, da Cutrale, em Borebi, no interior de São Paulo, deve indiciar e pedir a prisão preventiva de 11 sem-terra suspeitos de terem praticado atos de vandalismo na propriedade. Entre eles estão Miguel Serpa, coordenador estadual do MST, e Paulo Albuquerque, coordenador de área do movimento na região de Lençóis Paulista, onde fica a fazenda.” 9
As questões mais importantes da longa tragédia humana não podem ser solucionadas com idéias e pensamentos. A arma da critica não pode substituir a critica das armas.
1 “O superintendente do INCRA (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) em São Paulo, Raimundo Pires Silva, disse ontem que estão irregularmente em terras da União todos os proprietários e empresas com fazendas no antigo Núcleo de Colonização Monções. A área, de 50 mil hectares, fica no centro-oeste do Estado, entre os municípios de Iaras, Borebi, Agudos, Lençóis Paulistas e Águas de Santa Bárbara. Ali está a fazenda de 2.400 hectares da Cutrale invadida pelo MST na semana passada. Segundo Silva, a região onde fica a fazenda foi comprada pela União em 1909 para instalar colonos. O projeto não vingou, e as áreas ficaram desocupadas, levando a um processo de ocupação irregular. Os atuais ocupantes foram informados sobre a titularidade irregular. "É um patrimônio público, pertence ao povo", disse Silva. (Folhaonline 10/10/2009). Logo em seguida, pressionado pelos ruralistas, o Sr. Raimundo Silva amenizou suas declarações.
2 Antes do presidente, a linha de raciocínio da burguesia já tinha sido brilhantemente resumida pelo ministro da Agricultura, sinistro burocrata que atende pelo nome não menos sinistro de Reinhold Stephanes. “Não há o que falar. Isso não é caso para o ministro da Agricultura, é caso de polícia.” Globo.com – “Stephanes classifica ação do MST como ‘caso de polícia’ – www.globo.com 10/10/2009.
3 Agrosoft Brasil – “Presidente Lula diz que ato do MST em fazenda de laranjas foi vandalismo” - www.agrosoft.com 12/10/2009.
4 Globo.com – “Sem-terra destroem mais de mil pés de laranja no interior de São Paulo”– www.g1.globo.com 10/10/2009.
5 Alceu de Arruda Veiga Filho “Mudanças na composição das atividades agrícolas em São Paulo: conflito ou ajuste?” – Instituto de Economia Agrícola de São Paulo, Textos, 09/04/2003. www.iea.sp.gov.br
6 Composto pelas áreas de eucalipto, pinus, mata natural, cerrado e cerradão.. (Veiga Filho, idem)
7 Essa realidade agrária do estado mais desenvolvido do país se reproduz no restante do território nacional. É claro que, dependendo do estado, uns tem mais soja e menos cana, outros mais café e menos frutas, outros menos boi e mais soja, e assim por diante. Os interessados em uma comparação detalhada da utilização das terras para o país como um todo e para as diversas unidades da Federação, podem verificar no site do IBGE o” Censo Agropecuário 2006 - Resultados Preliminares”, particularmente as tabelas referentes à “Utilização das terras dos estabelecimentos agropecuários em 31.12 segundo as Grandes Regiões e Unidades da Federação”.
8 Esse tipo de ocupação do solo agriculturável de um país é típico de economias dominadas no mercado mundial. Esse estupro da terra seria uma escandalosa aberração nos Estados Unidos, Alemanha, França e outros países com agricultura desenvolvida, onde os cereais ocupam dois terços da área agrícola. Não podemos fazer agora a análise desse desenvolvimento desigual e combinado das áreas geoeconômicas. Basta apontar que essa diferença estrutural no uso da terra está na raiz das diferenças entre os salários e a produtividade internacionais. Nas economias dominantes (EUA, União Européia e Japão) predomina a extração da mais-valia relativa. Nas economias dominadas (América Latina, Ásia, Leste Europeu, África, etc.) predomina a mais-valia absoluta. Falaremos mais deste assunto futuramente.
9 O Globo – “Polícia deve indiciar 11 sem-terra acusados de destruir fazenda em São Paulo” – 13/10/2009
quarta-feira, 18 de novembro de 2009
BURGUESIA LARANJA
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toninhokalunga
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quarta-feira, novembro 18, 2009