quarta-feira, 7 de setembro de 2011

A IGREJA CATÓLICA E O GOLPE MILITAR DE 1964

Posted by toninhokalunga On quarta-feira, setembro 07, 2011 Comentários

Bonita fala de Haroldo Lima, professor universitário, durante a aula inaugural da Faculdade São Bento de Salvador, na Bahia! Uma bela aula de história!

LIMA, Haroldo. Aula Inaugural da Faculdade São Bento da Bahia do ano de 2011.
Salvador: Faculdade São Bento da Bahia, 2011. Disponível em:
www.saobento.org/publicacoes

Aula Inaugural da Faculdade São Bento da Bahia

Haroldo Lima

07 de fevereiro de 2011

Agradeço á direção da Faculdade São Bento o honroso convite que me fez para proferir essa aula inaugural, convite que não poderia deixar de atender, em função dos laços, antigos e profundos, que me ligam ao Mosteiro de São Bento de Salvador.
Faço um agradecimento particular a D. Gregório Paixão, OSB, Bispo Auxiliar de Salvador, a Dom Filipe Gomes de Souza, OSB, Diretor Geral da Faculdade São Bento da Bahia e à Professora
Doutora Alicia Lose, Coordenadora Geral da Faculdade São Bento da Bahia.

Como estamos no período das celebrações do centenário de nascimento de D. Timóteo Amoroso Anastásio, essa própria aula pretende também fazer parte dessas homenagens. É nesse sentido
que aceitei a sugestão de aqui discorrer sobre aspectos do regime militar implantado em 1964 no Brasil e sobre a postura de D. Timóteo nesse contexto.

Tendo participado de alguns dos acontecimentos que relatarei, espero que compreendam a referência que farei à minha pessoa e à de minha companheira Solange, em certos momentos.
E peço paciência àqueles para quem algumas coisas aqui referidas poderão ser repetitivas.

Como se sabe, a instauração da ditadura militar em 1964, em nosso país, foi a iniciativa que as elites brasileiras tomaram, com apoio norte-americano, para conter o movimento reformista
que contagiava a sociedade.
Vínhamos de uma grande vitória democrática alcançada em 1961, quando uma movimentação política impediu a quebra da legalidade constitucional. Um presidente da República renunciara
a seu mandato. Os então ministros militares anunciaram que não permitiriam a posse do sucessor legal, o então vice- presidente João Goulart, o Jango, porque seria de esquerda. Uma grande resistência popular foi desencadeada. Os militares recuaram. Um sistema parlamentarista foi às pressas introduzido no país, os poderes do presidente foram reduzidos, mas Jango tomou posse como presidente da República em 8 de setembro de 1961.
Na esteira dessa vitória, cresceu o sentimento nacional por reformas, a primeira das quais era a volta ao presidencialismo, que aconteceu um ano depois, através de vitória retumbante em
plebiscito. Em seguida ganha força campanha pelas “reformas de base”, a “reforma agrária”, a “universitária”, a “urbana”, a “bancária”, a “fiscal”, etc.

Apenas dois anos se passaram desde 1961 – ano da vitória da “legalidade” com a posse do presidente Jango - e já as mobilizações populares se desdobravam em passeatas, assembléias e greves.
Era o movimento social entrando em fase de grande ascenso. Aqui vale observar importantes acontecimentos sucedidos na Igreja Católica, no período. Pois, se estamos ressaltando nessa
nossa história o ano de 1961, ano da vitória da legalidade no Brasil, e o de 1963, quando ocorreu grande ascenso do movimento social no país, essas mesmas datas também correspondem a fatos centrais da história recente da Igreja.

Primeiro – 1961 - quando foi divulgada a encíclica Mater et Magistra do papa João XXIII. Segundo - 1963 - quando foi aberto o Concílio Vaticano II.
A divulgação da Mater et Magistra e a realização do Vaticano II, tudo ligado ao pontificado de João XXIII, significaram uma reorientação no pensamento da Igreja. A Mater et Magistra foi o primeiro documento papal que saudou o processo de socialização em curso no mundo, dedicando-lhe um capítulo específico, intitulado “A socialização”, no qual a socialização é dita como “fruto e expressão de uma tendência natural, quase irreprimível, dos seres humanos..”. O Concílio Vaticano II foi um momento de grande valorização dos leigos, convocados a serem “vanguarda na luta social”.
Não é por acaso que o lema da primeira Campanha da Fraternidade da CNBB, que se seguiu à abertura do Vaticano II, foi “Lembre-se: você também é Igreja”.
Essa guinada à esquerda do pensamento católico fortaleceu as forças progressistas da Igreja no Brasil, mormente as organizações juvenis a Juventude Agrária Católica, a Estudantil, a
Independente, a Operária e a Universitária.
A Juventude Universitária Católica, a JUC, já vinha tendo grande influência junto aos estudantes. Realizara, em julho de 1960, seu Congresso dos X Anos, no Rio de Janeiro. Presenciei o
entusiasmo com que todos os jovens que lá estavam, aprovamos o documento “Diretrizes Mínimas para o Ideal Histórico do Povo Brasileiro”, que defendia um “socialismo democrático” para o Brasil. O líder mais influente da JUC era Herbert José de Sousa, o Betinho, e o que ganhou mais projeção foi Aldo Arantes, que, como membro da JUC, foi eleito presidente da União Nacional dos Estudantes em 1961.
Aldo viria a ter, ainda em 1961, grande destaque, ao lado do governador Brizola, na condução da crise da legalidade.
Sucedeu que, após 1961, foi-se criando, dentro da JUC, uma espécie de setor político, em diversos estados do país. Uma das suas representações maiores e mais influentes era a da Bahia,
onde estavam Jorge Leal Gonçalves Pereira, que comigo formávamos uma dupla de quase-irmãos, (Jorge depois foi morto sob tortura), Paulo Mendes, Suzana Alice, Solange Silvany,
Edivaldo Boaventura, Liliana Mercury, Rubem Ivo, Sergio Gaudenzi, Joviniano Neto, Fernando Schimith e vários outros.
A intensa atividade desse setor pelo Brasil afora e suas posições de esquerda acirraram as contradições com membros da hierarquia. Uma virada nessas contradições aconteceu com a
expulsão de Aldo Arantes dos quadros da JUC.
Mas, como a contradição é universal, à mesma época, e pelas mesmas razões que levaram à expulsão de Aldo, religiosos de diversas partes do Brasil nos acolheram de braços abertos e
participavam conosco da movimentação em curso.
Realço, aqui na Bahia, a figura de D. Jerônimo de Sá Cavalcanti, o beneditino que se fez amigo da JUC, em cuja sede na Praça da Sé comparecia, dando-lhe apoio aberto, ministrando cursos para os jucistas e ajudando a JUC com suas reflexões. D. Jerônimo celebrava aos domingos a missa das dezoito horas no Mosteiro, sempre com grande assistência daqueles que iam para assistir à
missa, mas também para ouvir as eloqüentes homilias de D. Jerônimo, de claro sentido progressista.

Sensível às restrições da hierarquia, o setor político da JUC logo compreendeu que, na verdade, se queria atuar politicamente, isto não poderia ser dentro de uma entidade da Igreja. Foi assim
que partimos para criar um partido, a Ação Popular, (grifo meu) o que fizemos realizando seu Congresso de fundação em Salvador, na Escola de Veterinária, em Ondina, durante o carnaval de 1962.
AP começou a existir recebendo como herança o setor político da JUC em diversos estados. Por isso, já surgiu como a maior e mais influente força política no seu meio, o movimento universitário brasileiro. No XXV Congresso da UNE, em 1962, o primeiro em que a AP apareceu com seu próprio nome, nossa força era tal que, os três candidatos a presidente da entidade eram todos de AP, inclusive o que foi eleito, Vinicius José Caldeira Brant.
Mas, ao tempo em que crescia o movimento popular, crescia também a resistência a ele. As elites enxergavam, em toda aquela inquietação, ameaça a seus privilégios. E reagiam.

Vivia-se o clima da chamada “guerra fria” e o conservadorismo nacional começou a disseminar a idéia de que estaria em curso a instauração no Brasil de uma “república sindicalista”, ou de um governo comunista. Frente à polarização existente entre os Estados Unidos e a União Soviética, propagou que o “dedo soviético”, o “dedo de Moscou”, o “dedo comunista” estaria por trás de tudo aquilo. A influência e a força dos comunistas eram hipertrofiadas para despertar temor. Comunista era considerado todo aquele que de fato o era e muitos que nem sabiam o que era isto.

A 13 de março de 1964 o governo realizou o grande comício da Central do Brasil no Rio de Janeiro. O próprio presidente da República anunciou estar dando o “primeiro passo” para a
desapropriação de terras às margens de rodovias, ferrovias e açudes, sem “indenização prévia e em dinheiro”. Acrescentou que isto demandaria uma reforma da Constituição, sem o que não
haveria uma verdadeira reforma agrária no país. Dezoito dias depois desse pronunciamento, o presidente João Goulart foi derrubado do poder e começou a ditadura militar que se estendeu
por 21 anos no país.
O golpe teve rejeições e suscitou valorosas tentativas de resistência. Aqui mesmo na Bahia, alguns de nós, da AP, com gente de outras organizações, chegamos a nos deslocar para a
cidade de Feira de Santana para, junto ao prefeito Francisco Pinto, prepararmos alguma resistência.
Como não houve em nível nacional qualquer oposição efetiva ao golpe, também em Feira
desistimos de qualquer intento, pois ficaríamos isolados.
A ditadura se implantou rapidamente e até recebeu apoios.No Rio de Janeiro, a 2 de abril, um milhão de pessoas saiu às ruas na passeata chamada “Marcha da Vitória”. Toda a grande mídia
de repercussão nacional, salvo o jornal Última Hora, do Rio, apoiou o golpe. E a CNBB, em 03 de junho de 1964, divulgou nota em que dizia: “agradecemos aos militares que, com grave
risco de suas vidas, se levantaram... etc.”.

Na Bahia, a Assembléia Legislativa cassou o mandato de sete deputados. O Conselho Universitário da UFBA, então Universidade da Bahia, aprovou, em sessão de 9 de abril, moção
com “calorosas saudações aos comandantes militares que atuam em nosso estado... etc.”. Nos primeiros dias os golpistas fizeram muitas prisões, como a de Jorge Leal, na Refinaria de Mataripe, e muita gente se escondeu para não ser detida, como eu próprio.

Sucedeu que pessoas de extração cristã organizaram o Grupo de Militantes Cristãos, o GMC, que se reunia em uma casa que os jesuítas tinham na Graça, hoje demolida, sob os auspícios
do Padre Dionísio, jesuíta, que era assistente da JEC. O GMC procurava escrever em jornal da arquidiocese e eu, um de seus membros, ajudava D. Jerônimo na irradiação da missa das 18
horas dos domingos no Mosteiro. A missa era retransmitida pela então Radio Cruzeiro da Bahia, a homilia de D. Jerônimo ecoava longe e, durante a comunhão, eu fazia reflexões de sentido
progressista sobre temas gerais. Um dia D. Jerônimo, preocupado, embora tranqüilo, chamou-me e disse que o Exército mandara pedir à Rádio Cruzeiro a gravação da missa do último domingo.

No desdobramento, a missa não mais foi irradiada. A receptividade do GMC por parte do cardeal da Bahia na época não foi boa. O livro de Solange Lima, “De pouso em pouso em busca do repouso prometido”, recentemente publicado pelo Mosteiro de São Bento, mostra como esse grupo foi mais excluído do que atraído para um convívio fraternal.
Em seis de agosto de 1965 morre D. Plácido Staeb, Abade do Mosteiro de São Bento de Salvador. A comunidade tinha que escolher o novo abade. Pois não é que Jorge e eu, do alto de
nossos 27 e 26 anos, começamos a nos preocupar com o assunto?
Mas, como não tínhamos nada a fazer, resolvemos torcer para que o novo abade escolhido fosse D. Jerônimo de Sá Cavalcanti. Em 31 de agosto a escolha foi feita. E qual não foi a nossa surpresa
quando, o próprio D. Jerônimo veio, muito animado, nos transmitir a noticia: o abade escolhido é uma excelente pessoa, vai ser muito bom para nós todos, tem idéias muito avançadas, é de
uma solicitude total e chama-se Timóteo Amoroso Anastácio.
E D. Jerônimo estava certo. Tendo trabalhado um ano antes como auxiliar de liturgia de D. Hélder Câmara, gradativamente D. Timóteo foi assumindo o papel do homem em cuja clarividência você podia confiar, da pessoa equilibrada, aberta ao diálogo e firme nas posições focadas na solidariedade, na justiça, na bondade e na discrição. De fato, nós ganhamos com D. Timóteo, o Mosteiro ganhou com D. Timóteo, a Bahia ganhou com D. Timóteo.
D. Timóteo quis se encontrar com a Bahia, a terra onde foi erguida a primeira construção beneditina fora da Europa, em 1582, justamente o Mosteiro que ele iria orientar. Ao se deparar
com essa terra, sorveu o melhor da “baianidade” – a alegria, a hospitalidade, o encanto pelo ritmo, a diversidade – e deu à Bahia o melhor do “amoroso” – sua ternura, sua capacidade de respeitar as diferenças, de ajudar, em suma, como já foi dito, sua “lucidez de coração”.

O quadro geral que viu na Bahia era o da injustiça social, que produzia pobreza e sofrimentos em todo o Brasil. Mas, além disso, D. Timóteo percebeu, naquela terra de tanta presença negra,
um discriminado particular, o praticante da religião afro.
Enxergou também, naquele tempo de arbítrio e repressão, uma figura que precisava de apoio emergencial, o perseguido político.

E D. Timóteo não pestanejou: abriu seu coração e as portas do Mosteiro para receber esses dois tipos de personagens. Buscando o diálogo foi ao encontro e fez amizade com algumas das maiores sacerdotisas baianas, como Mãe Menininha do Gantois e Mãe Olga de Alaketu. A respeito desses encontros, refletiu: “O encontro, por exemplo, com o pessoal dos santos...
Uma beleza! Um pessoal, inclusive, de grandes virtudes cristãs, de acolhimento, de humildade, de paciência, de gentileza, de hospitalidade e também de respeito.” Observando que o candomblé não acentua o debate doutrinal, disse: “É uma vivência ancestral, uma atitude, uma identidade, uma cultura ancestral que se expressa religiosamente... Por isso, acho que, com o candomblé, o diálogo é muito mais no nível da relação pessoa pessoa, dentro do respeito." (Sem Fronteiras, N° 244, 1996, pg. 22) E deu sua contribuição decisiva para essa grande obra ecumênica que foi a Missa do Morro, celebrada pela primeira vez no próprio Mosteiro, e sobre a qual observou: “Essa missa foi feita aqui, numa criatividade imensa, usamos atabaques, berimbaus, violão etc. Foi uma celeuma (...) Mas o pessoal aberto às mudanças apreciou (...) pude mostrar que (esses instrumentos) eram um fato da cultura da Bahia , ... representavam a dimensão cultural da Bahia” (Catálogo das Referências Culturais do Centro Histórico de Salvador,1988)
O ano de 1968 viu o desabrochar de grandes mobilizações populares pelo mundo afora. A referência mais geral presente em todos os eventos era o apoio à heróica luta dos vietnamitas contra o Exército dos EUA em solo do Vietnam. A guerra de libertação do Vietnam frente aos EUA despertava simpatia natural, grande, crescente e em escala mundial. Tinha as características da peleja de um David contra Golias.
Já em janeiro de 1968, os vietnamitas, dirigidos pelo lendário general Giap, lançam sua famosa “Ofensiva do Tet”, atacando de surpresa mais de 100 cidades protegidas pelo Exército americano, infringindo às forças americanas uma derrota moral e material retumbantes. Logo após, ocorre o famoso “Maio de 1968” na Europa, com estudantes e povo em geral ganhando ruas especialmente da França e Alemanha e assentando barricadas em Paris. Havia mobilização juvenil na China, na chamada Revolução Cultural, onde, depois, ficamos sabendo de graves erros cometidos, mas que, na época, chamava a atenção pelos apelos de “ousar lutar, ousar vencer” e pela enormidade dos números de jovens em movimento.
No Brasil, o ano de 1968 não foi diferente. A sociedade começava a reagir de forma mais expressiva à ditadura.
Estudantes, sob a direção da União Nacional dos Estudantes, rompiam as mordaças impostas e começavam a ganhar as ruas.
Choques sucediam com os policiais. Em março, foi morto o estudante Edson Luis, no Rio de Janeiro. Os protestos cresceram. Em junho realiza-se a famosa “passeata dos 100 mil”, também no Rio.
O movimento se espalha e chega a diversos estados. A treze de dezembro a ditadura edita seu mais draconiano ato o de n° 5, pelo qual fechava o Congresso, as Assembléias estaduais, as
Câmaras de Vereadores, reduzia os poderes do Judiciário e ampliava os do general-presidente, permitindo-lhe todo tipo de arbitrariedade. O ano de 1968 é conhecido internacionalmente
como “O ano que não terminou”.
A partir do AI-5 houve uma mudança nas formas de agir da ditadura no Brasil. Até então, havia repressão, prisões, arbítrios, obscurantismo. Mas, depois do AI-5, começou o uso de métodos
fascistas de governo, o exercício de uma rede nacional de espionagem da população civil - os “órgãos de segurança” - o emprego sistemático da tortura e dos assassinatos políticos. A
resistência da sociedade também mudou: mesmo setores que apoiaram o golpe em seu início, começaram a reagir. E, para alguns, não restou alternativa senão a clandestinidade. Foi assim
com muitos daqueles jovens que começaram sua vida política na JUC, sonhando com uma sociedade mais justa, e foram à AP, com os mesmos sonhos e, depois, não abriam mão de seus sonhos.
Foi neste contexto, posto que nenhuma outra forma de resistência legal era tolerada, que entrou em pauta a idéia da resistência armada. O exemplo vietnamita, do pequeno enfrentando e vencendo o grande, era uma referência de grande poder inspirador.
O ambiente mudara totalmente. Grupos, na clandestinidade, procuravam caminhos mais adequados para elevar a luta a níveis superiores. Alguns destes grupos e setores na legalidade tratavam de incrementar a luta institucional, também reprimida, sujeita a arbítrios, prisões e torturas. O certo é que a sociedade não se rendia, e procurava meios de reencontrar a liberdade perdida.
Estudantes, trabalhadores em geral, artistas, intelectuais, religiosos, se movimentavam, cautelosamente, organizando as trincheiras libertárias. E os episódios se sucediam.
O sindicato dos bancários da Bahia, por exemplo, sempre teve muita tradição de luta. Setores progressistas planejaram disputar, em Salvador, a eleição de sua direção. Montaram uma
chapa. Tinham expectativa de vitória. Até que a Delegacia Regional do Trabalho comunicou que os “órgãos de segurança” vetaram os candidatos “cabeças” da chapa. No arbítrio institucionalizado existente, isto era normal e, se a chapa quisesse, os nomes vetados poderiam ser substituídos. Que fazer? Reuniões precisavam ser realizadas, imediatamente, para programar os próximos passos. Onde fazê-las, se tudo estava vigiado? Pelas mãos franzinas de D. Timóteo uma porta se abriu, a do Mosteiro de São Bento de Salvador, e as reuniões foram realizadas. Outras similares, em outras ocasiões, também aí ocorreram.No período anterior ao golpe de 1964, no nordeste brasileiro, uma atividade se notabilizou, a das Ligas Camponesas.
Dois líderes se projetaram nessa frente, o advogado Francisco Julião e o padre Alípio de Freitas. Naturalmente que depois do golpe tiveram que desaparecer para não serem “desaparecidos”. O
padre Alípio, da AP, passou uma temporada em Cuba, fazendo cursos. Voltou ao Brasil, totalmente clandestino. Localizou-se em São Paulo. Veio à Bahia, para trabalho político. Ficou escondido no apartamento em que eu morava. Não podia aparecer, em seu quarto passava o tempo todo estudando. Pois é nessa situação, de pessoa extremamente visada, que
um belo dia o padre Alípio manifestou desejo de comungar. Levá-lo a uma igreja, mesmo em uma missa com pouca assistência, seria uma temeridade.
O certo era trazer, da forma mais discreta possível, um religioso ao nosso próprio apartamento. E assim foi feito.
Certa noite, eu e Rubem Ivo paramos uma velha Rural Willys na porta do Mosteiro de São Bento. A operação tinha que ser rápida, conforme combinado previamente com os envolvidos.
Um monge, em trajes civis apareceu na porta, como acertado. Desceu as escadas e rapidamente entrou no carro, que logo partiu. O monge segurava, com extremo cuidado, uma pequena
embalagem coberta com panos brancos. Sabia com quem ia encontrar e tinha clareza sobre o risco do encontro. Em Brotas, onde morávamos, Solange já nos esperava para rápido abrir a
porta. E em seguida, ante o padre Alípio a apresentação foi feita:
padre, este é Dom Timóteo Amoroso Anastácio, Abade dos beneditinos. Na continuidade a luta contra a ditadura ficou mais acirrada.
Grupos optaram por ações que levavam a confrontos de rua, nos quais em “tiroteios” simulados, muitos jovens e não jovens foram exterminados. Quem escapasse não escapava da tortura, e às
vezes ia aumentar a lista dos “desaparecidos”, fazer crescer a relação das “viúvas do talvez” e das “viúvas do quem sabe”, como disse um político da época, Alencar Furtado.
A repressão era brutal. Contraditoriamente a resistência crescia, mesmo nas reprimidas greves dos trabalhadores, nas observadas escolas e faculdades, nos púlpitos vigiados, na imprensa censurada, nos congressos científicos ameaçados, na esperança disfarçada nos versos de nossos poetas. A hierarquia da Igreja, a que tinha mais voz, a mais ouvida, falava um linguajar
solidário ao povo. Em 1973, no meio do chamado “milagre brasileiro”, bispos e superiores religiosos do Nordeste lançaram o documento “Eu ouvi os clamores de meu povo”, crítica corajosa ao modelo imperante.

Aparece então, em 1972, a Guerrilha do Araguaia, um gesto eloqüente de insubmissão, que refletia a disposição do povo brasileiro de ir até o limite máximo para não se sujeitar ao regime
de força. Os embates se desenvolvem. Os guerrilheiros recuam para o interior da mata, onde tinham superioridade de conhecimento do terreno e podiam neutralizar potentes armas. O
Exército efetua, até meados de 1973, duas campanhas de cerco e aniquilamento. Não conseguiu penetrar em profundidade na floresta. Não atingiu seus intentos. Retirou-se. Então, aos olhos
atônitos da população local, sucede um fenômeno que nunca tinha acontecido: os “homens da mata”, como eram chamados pelos nativos os guerrilheiros, reapareceram, com poucas baixas, depois de dois anos de guerra contra o Exército, sem serem derrotados, portanto vitoriosos. Era incrível, mas aconteceu.
Pelo final de 1973, o Exército monta sua terceira operação, sofisticada, com forças especiais, tropas espalhadas por toda a vizinhança. Prende e tortura muita gente. Nessa base, monta seus
guias, com os quais penetra nas selvas. Desta vez vai fundo. Com enorme superioridade de armamento, começa a aniquilar os guerrilheiros. Quem é apanhado vivo é executado. Poucos
escapam. Sessenta e nove morrem. Deram a vida pela liberdade.
A guerrilha foi liquidada. Mas sua mensagem ficou clara. O povo não aceitava a ditadura. O Exército precisou de três anos para exterminar aquela guerrilha, e teve que fazer a maior
mobilização de tropas jamais feita no país desde a Guerra do Paraguai. Nada poderia indicar que aquele tipo de resistência, seria a última.
Gradativamente o movimento libertário ia ganhando mais nitidez, amplitude e clareza de objetivos. Aglutinou-se em torno de três bandeiras: a Anistia Ampla, Geral e Irrestrita, a Revogação de todos os Atos e Leis de Exceção e uma Constituinte Livre e Soberana. Novas organizações surgiram ligadas a esses objetivos, particularmente os Comitês Brasileiros pela Anistia.
A ditadura começava a ser colocada na defensiva. Entre os seus altos escalões começaram a aparecer divergências, um grupo era tido como “moderado”, tendente a uma abertura e outro era chamado de “linha dura”. Insistentemente questionado, o regime começou a ter que dar explicações. Sem apoios, fazia promessas para angariá-los, como a de que não haveria mais torturas. Ante os casos de Wladimir Herzog e Daniel Fiel Filho que foram “suicidados” em quartéis, prometeu que aquilo não mais aconteceria. Foi quando ocorreu a chamada “chacina da Lapa”.

No final de 1976, a ditadura, através de informações arrancadas na tortura, chega a uma reunião da direção do PC do B, executa dois dos seus principais dirigentes, liquida com outro na tortura e faz quatro prisioneiros. Era a “chacina da Lapa”.

Entre os prisioneiros estava eu e o Aldo. Ocorre que o Exército não reconheceu que tinha feito
prisioneiros. Ao contrário. A casa em que eu morava, em São Paulo, com Solange, nossas três filhas e uma amiga que lá trabalhava, foi ocupada por quatro dias. Da casa ninguém saia. Os
ocupantes diziam que estavam esperando eu voltar para ser preso.

Ao cabo dos quatro dias, como eu não chegara, disseram que eu tinha me evadido. E a montagem foi tão bem feita que Solange ficou com a impressão que eu percebera algo e fugira. Em síntese,
a própria Solange era testemunha de que o Exército tentou me prender, mas que eu não fora preso por que não voltara à casa onde morava. Era o cenário apropriado para que eu, que há dias já estava sendo torturado, “desaparecesse”, sem deixar pista.
Solange, quando saiu da prisão domiciliar, compreendeu toda a trama urdida e começou a mobilizar amigos em defesa de minha vida.
A “chacina” acontecera em São Paulo, mas logo fomos para o Rio, onde as torturas começaram de imediato. Bárbaras. Brutais.
Dias seguidos, noites também. Naquelas sevícias, uma pessoa pode morrer, mesmo se a intenção do torturador não for a de matar, mas por não resistir, em determinado momento, a algum
golpe, ou por que um choque elétrico lhe paralise um órgão vital.

E era assim que eu me sentia nas câmaras de tortura da tristemente conhecida Rua Barão de Mesquita, no Rio de janeiro. As torturas procuravam obrigar o torturado a revelar como
chegar a dirigentes, quadros do partido, pessoas de apoio. No meu caso particular, além disso, havia um dado central, a gráfica do partido. No início de uma sessão de tortura, um torturador
bradou com voz tonitruante: “nós sabemos que você sabe onde fica a gráfica do Partido. E vamos extrair essa informação de você agora”. Pelas normas partidárias, eu não deveria saber onde ficava a dita gráfica.
Mas, por uma casualidade, fiquei sabendo. As torturas focadas nesse ponto foram brutais, mas eles não conseguiram extrair a informação que queriam.
E de repente a voz tonitruante voltou a bradar: “Quem é esse D. Timóteo e o que é que ele tem com você?” Foi para mim como se uma luz tivesse acendido no fim do túnel. Imaginei que meu
amigo recebera a noticia de que eu estava “desaparecido”; que percebera ser este o primeiro passo para o meu sumiço definitivo; e sereno, firme e rápido, tomou alguma iniciativa, vinculando
diretamente o seu nome e sua posição de Abade, no esforço por salvar minha vida. Soube depois que as providências que Solange tomou chegaram até ele, dando conta de meu paradeiro
desconhecido, e que ele resolveu telegrafar ao Presidente da República pedindo pela minha vida.
O certo é que, a partir do momento em que o nome do D.Timóteo ecoou nas câmaras de tortura da ditadura, na Barão de Mesquita, passou a haver uma diferença na forma de me tratarem.
Até então, como disse, a qualquer instante, eu poderia morrer, vítima da tortura desenfreada; daí por diante eu percebia, por baixo do capuz, alguém discretamente tomando-me os pulsos,
auscultando meu coração, orientando para que as descargas elétricas e os maus-tratos fossem mais espaçados. Passou a existir cuidado com minha vida. E isto foi graças a D. Timóteo.

A “chacina da Lapa” foi uma espécie de canto de cisne dos atos bárbaros da ditadura. Nesse episódio, ela ainda golpeou com brutalidade, mas a sociedade também demonstrou força. Houve
protestos. Duas longas cartas, do Aldo Arantes e minha, denunciando as torturas que sofremos, foram publicadas integralmente na grande imprensa. A sociedade soltava-se. Os movimentos pela Anistia cresciam. Um senador, Teotônio Vilela, que outrora apoiara o regime, desliga-se dele, percorre todos os presídios políticos do país e ao final proclama que não viu um só
bandido nesses locais, viu patriotas, democratas, gente simples e séria. Finalmente uma lei foi aprovada, uma anistia foi promulgada, ainda que com deformações, e uma grande vitória foi
conseguida. As cadeias se abrem, os exilados retornam, e todos juntos, “caminhando e cantando” sustentam que “quem sabe faz a hora não espera acontecer” e que “amanhã, vai ser outro dia”.
A partir da anistia de 1979 o regime militar entrou em sua fase moribunda. Na primeira eleição que se seguiu, gente que estava na cadeia no dia da Anistia foi eleita para a Câmara
Federal, como eu e o Aldo.
O povo preparava sua ofensiva, que aconteceu entre 1983 e 1984, com a magnífica campanha das Diretas Já, vitoriosa nas ruas, derrotada no Parlamento. O movimento democrático foi ao Colégio Eleitoral, para ali eleger um democrata, Tancredo Neves, comprometido com a idéia de
acabar com o próprio Colégio e por um fim à ditadura. E foi o que aconteceu.

A página da ditadura, escrita durante 21 anos, não está inteiramente virada, pois que há ainda lutadores cujos paradeiros são desconhecidos, há os restos mortais de muitos combatentes do
Araguaia que não foram encontrados, porque pistas consistentes não foram reveladas até hoje.
Mas, olhando em perspectiva toda essa história, podemos perceber que o povo, que sabia, “fez a hora, não esperou acontecer” e, numa prova inquestionável da sua força elegeu, em 2010, uma ex-presa política e ex-torturada para Presidenta da República.
Hoje, é aquele “amanhã, que vai ser novo dia”.

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