FREI BETTO E LEONARDO BOFF FALAM SOBRE OS PRIMEIROS QUATRO MESES DO PAPADO DE FRANCISCO
Texto copiado do Jornal Brasil de Fato: http://www.brasildefato.com.br/node/23898
Frei Betto e Leonardo Boff avaliam os primeiros quatro meses do papado de Francisco
“Quando falamos de libertação queremos nos opor à opressão de qualquer tipo”, diz Boff. “Concordo que ele ainda não tratou das causas da pobreza – este é o ponto, o calcanhar de Aquiles”, diz Betto
21/08/2013
Simone Freire
da Redação
As entrevistas abaixo, com Leonardo Boff e Frei Betto, foram realizadas em separado. Como as cinco perguntas enviadas para ambos, por e-mail, são praticamente as mesmas, as respostas aparecem agrupadas.
As duas últimas perguntas não foram respondidas por Leonardo Boff, que já havia se comprometido previamente a responder no máximo a três perguntas, em virtude da falta de tempo diante dos preparativos de uma viagem que está prestes a fazer para a Europa.
Brasil de Fato – No Teologia do cativeiro e da libertação, o senhor [Leonardo Boff] diz que “a consciência aguda dos mecanismos que mantêm a América Latina no subdesenvolvimento como dependência e dominação levou a falar em libertação. Esta categoria libertação, correlativa com a outra dependência, articula uma atitude nova no afrontamento com o problema do desenvolvimento. […] A categoria libertação implica uma recusa global ao sistema desenvolvimentista e uma denúncia de sua estrutura subjugadora. Urge romper com a rede de dependências”. Nos dias atuais, o senhor ainda acha que é inviável o desenvolvimento da América Latina dentro do sistema capitalista e só há saída com a ruptura?
Leonardo Boff – O que eu quero dizer e o repito em todos os meus livros é que há uma contradição entre o capitalismo e a sustentabilidade e entre o capitalismo e a democracia. O capitalismo como sistema econômico e na sua forma política como liberalismo e neoliberalismo busca o lucro sem qualquer consideração, seja da justiça social seja da justiça ecológica. Onde ele se instala cria logo desigualdades: entre aqueles que acumulam privadamente e muito e o resto da população assalariada que vive de salários, sempre insuficientes para levar uma vida digna.
A lógica da sustentabilidade é buscar e manter o equilíbrio entre todos os fatores, o que implica a cooperação e solidariedade de todos com todos. Ora a lógica do capital é a concorrência de todos contra todos. Não possui nenhum sentido de solidariedade e de cooperação. Porque cria desigualdades, torna impossível a democracia. Esta pressupõe a igualdade mínima entre os cidadãos, a equidade (distribuição dos benefícios e dos custos entre todos), o respeito aos direitos e o combate aos privilégios. Ora isso não ocorre nem nos países tecnologicamente avançados.
Por isso, a democracia se mostra, muitas vezes, como pura farsa ou um ideal a ser buscado e melhorado. Boaventura de Souza Santos cunhou a expressão “democracia sem fim” quer dizer, viver em todos os níveis, na família, na comunidade, nos sindicatos, na política e no Estado. Quando falamos de libertação queremos nos opor à opressão de qualquer tipo, especialmente, esta social produzida pelo capitalismo. Para se alcançar a libertação – isso nos ensinou Paulo Freire – precisamos fazer uma ruptura com o mecanismo que produz opressão.
Frei Betto – Para a Teologia da Libertação, o termo “libertação” não é restritivo, é abrangente. Vai desde o mais íntimo da pessoa – libertar-se do pecado – às estruturas opressivas de uma sociedade. O modo de se alcançar essa libertação estrutural depende da conjuntura histórica. Sob ditaduras militares na América Latina, não havia alternativa fora da revolução armada. Agora, conquistada a democracia relativa, pode-se buscar a libertação através da pressão popular e pela via pacífica.
De qualquer modo, há sim que buscar uma ruptura com o sistema capitalista, intrinsecamente injusto, e conquistar aqueles “outros mundos possíveis” a que se referem o Fórum Mundial Social e os Bem Viver (Sumak Kawsay) dos povos indígenas andinos.
Ao longo dos anos, houve mudanças nos paradigmas da Teologia da Libertação? Em que espectro se encontra o papa Francisco?
Leonardo Boff – O papa Francisco se inimizou com a presidenta Cristina Kirchner porque sustentava que a pobreza não se combate com filantropia, assistencialismo e caridade, mas com justiça social. Sempre se confessou peronista da linha justicialista, quer dizer, aquele peronismo que quer a mudança social rumo a mais igualdade. A Cristina Kirchner que disse: finalmente temos uma papa argentino, Francisco retrucou: não, finalmente temos um Papa peronista.
O papa nunca se opôs à Teologia da Libertação. Esta não é uma doutrina ou escola. É um método de partir do ver as contradições, julgá-las analiticamente e agir de forma transformadora. Foi ele que reintroduziu no Documento de Aparecida este método que havia sido abandonado por medo de marxismo e de abandonar a Doutrina Social da Igreja que sempre parte de cima, do doutrinário e tenta fazer aplicações.
O papa age conforme as intuições da TL especialmente dando centralidade ao pobre, à convivência, a um estilo de vida uma sobriedade compartida. Ele foi um seguidor da vertente argentina da TdL que é a teologia da cultura popular ou teologia do povo (no sentido peronista, povo organizado e consciente). Assim o testemunhou seu professor que ainda vive Juan Carlos Scannone.
Frei Betto – Sim, ela procura responder às demandas temáticas de cada momento histórico, sem nunca perder de vista o objetivo maior de superar todas as estruturas opressivas de qualquer sistema social. Hoje, a TdL não trabalha apenas com o tema da superação do capitalismo e da busca de uma sociedade baseada na economia solidária, na partilha dos bens da Terra e dos frutos do trabalho humano, que sigo chamando de socialismo. Trabalha também com novos paradigmas, como a preservação ambiental (tema no qual Leonardo Boff se destaca), astrofísica, biogenética, relações de gênero etc.
Em uma parte do discurso “Algumas tentações contra o discipulado missionário”, o papa cita: “O reducionismo socializante. É a ideologização mais fácil de descobrir. Em alguns momentos, foi muito forte. Trata-se de uma pretensão interpretativa com base em uma hermenêutica de acordo com as ciências sociais. Engloba os campos mais variados, desde o liberalismo de mercado até a categorização marxista”. O senhor acredita que isso tenha sido uma alusão à Teologia da Libertação?
Leonardo Boff – O papa chama a atenção para métodos que não passam pelo contacto com os pobres e oprimidos, coisa que acontece entre os chamados marxistas que apenas veem a dimensão de classe e não a dimensão humana sofredora, a pessoa que tem outras fomes para além daquela de pão, de comunicação, de diálogo, de ser escutado. Não importa se quis fazer alusão à TdL ou não. O que importa que agiu e se comportou como sempre quis e disse a TL que nunca tem apenas uma direção: existe aquela dos afrodescentes, dos indígenas, das mulheres, dos oprimidos economicamente, dos discriminados socialmente. Para cada opressão concreta deve-se buscar a correspondente libertação. Mas o fundamental é que ela é uma denúncia das opressões e apresenta uma alternativa de libertação feita pelos próprios oprimidos conscientizados e organizados e com aqueles que se aliaram a eles.
Frei Betto – Sem dúvida, há uma visão deturpada da Teologia da Libertação que ainda predomina em Roma e na Igreja Católica da Argentina, tradicionalmente conservadora. Ocorre que não existe hermenêutica teológica ou bíblica sem respaldo das ciências, inclusive as sociais. A teologia oficial da Igreja, vigente, hoje, é a de Santo Tomás de Aquino, baseada na filosofia de um pagão grego chamado Aristóteles. A TdL, ao analisar a realidade, utiliza o método de um alemão ateu chamado Marx. É um equívoco julgar que o marxismo é uma religião e a fé cristã, uma ideologia. Maior ainda equiparar laranja e banana como se as duas fossem abacate...
Em sua visita ao Brasil, o papa Francisco evitou falar de temas problemáticos como homossexualidade, uso da camisinha, ordenação de mulheres, entre outros. Para alguns críticos, sua linha vai mais de encontro à Doutrina Social da Igreja (que exclui o socialismo como remédio da sociedade e acredita no aperfeiçoamento da justiça mediante a caridade), do que posicionamentos da própria Teologia da Libertação. Correto?
Frei Betto – Correto à luz dos pontificados de João Paulo II e Bento XVI. Mas seria prematuro afirmar o mesmo em relação a Francisco. Ainda é muito cedo para avaliar. De qualquer modo, em poucos meses ele deu passos importantes, como priorizar os temas sociais (desigualdade, opção pelos pobres, Igreja despojada etc) e não “pessoais” (aborto, preservativo etc); reformar o papado, despindo-o de seu caráter monárquico; exigir dos bispos abandonar atitudes principescas; e sinalizar a reforma da Cúria Romana.
Concordo que ele ainda não tratou das causas da pobreza – este é o ponto, o calcanhar de Aquiles. Como dizia Dom Helder Câmara, quando falo dos pobres, todos me chamam de cristão; quando denuncio as causas da pobreza, me acusam de comunista...
Especificamente sobre a ordenação das mulheres. O papa já se colocou totalmente contrário. Em seu livro Eclesiogênese: A Reinvenção da Igreja, o senhor [Leonanrdo Boff] cita “A posição da mulher na Igreja deve acompanhar a evolução da mulher na sociedade civil. (...) Torna-se cada vez mais incompatível qualquer discriminação baseada numa diferenciação biológica e cultural”. Como o senhor avalia a possível “nova Igreja” comandada pelo papa Francisco sem a possibilidade do sacerdócio da mulher, tão discutido e defendido pela TL?
Frei Betto – Na viagem de retorno a Roma, o papa aludiu à necessidade de uma nova teologia da mulher. Pode ser uma janela para o debate interno do tema. Ainda que haja resistência, não há fundamento bíblico para negar a ordenação de mulheres, uma vez que elas integravam o grupo de Jesus, como atesta Lucas no capítulo 8 versículo 1, fornecendo os nomes de várias, e elas foram a primeira apóstola – a samaritana; e a primeira testemunha da ressurreição – Maria Madalena.
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