O DIA QUE VENDI COXINHAS PARA OS COXINHAS
Meu
vizinho comprou um food truck e deixou na minha garagem, ele teve que viajar
para Angola onde dirige um documentário; roteiro meu.
No domingo, eu afinzaço de ver de perto as manifestações e
entrevistar alguns revoltados, tive uma idéia inusitada.
Preparei uns quitutes com minha esposa e minha filha, botei um
avental, um chapéu de osso de cachorro, entrei no truck e fui para a avenida.
Esse era o meu disfarce para participar daquela farsa.
Minha esposa, que é peruana e chef de cozinha, fez ceviche. Eu,
que sou oportunista, fiz coxinhas gourmetizadas.
Foi um sucesso.
Meus primeiros clientes foram dois super heróis: um alucinado
travestido de Batman e outro, de verde-amarelo, mas com as vestes do Capitão
América.
Coxinhas, cara, queremos coxinhas, disse o Homem-morcego.
Com pimenta ou sem pimenta, senhor? É vermelha, a pimenta é
vermelha, pergunta-me o Capitão América, assustado e defendendo-se com seu
escudo.
Vermelha, não, gritou o Batman; o senhor é comunista.
Consumista? Perguntei, fingindo-me de desentendido.
Duas Cocas-Cola e duas coxinhas gritou uma senhorinha esticando
uma nota de 50 lascas. Pegou o produto e foi embora, não perguntou quanto
custava e nem se tinha troco.
Vi uma porrada de gente tirando selfies com os militares,
mulheres se despindo para exibir as cirurgias dos seios, muitos cartazes com
erros grosseiros de ortografia, algumas coisas escritas em inglês macarrônico,
cachorrinhos de pulôver, crianças mostrando o dedo médio para as câmeras... Uma
loucura.
Nenhum negro.
Tem coxinha de quê, senhor? Perguntou um skinhead com uma
suástica tatuada na cabeça. Frango com buquê de damasco, bacalhau orvalhado de
pitanga, picanha do príncipe com gotículas de sangue azul, e a tradicional
coxinha de ossobuco salpicado de tomilho do mediterrâneo, senhor.
Ossobuco, cara. Preciso de energia. Quero chutar a cabeça de um
comunista hoje. Esses filhos da puta favelizaram o Brasil, esses vermes
conseguiram em 12 anos destruir o que levamos 500 anos para construir; por que
não vão morar na União Soviética?
Os militares não mataram Zé Dirceu, e olha no que deu. Aquele seqüestrador
seqüestrou a nação, nos fez de reféns. Falou um velhinho, usando uma máscara do
Pequeno Kim.
Não mataram Dilma, veja como o país está. Retrucou sua consorte
- também com a máscara do Kataguiri - deixaram Lula solto e ele assaltou a
Petrobras. Por isso que eu sou a favor da chacina, bandido bom é bandido morto.
Se tivessem fuzilado todos esses comunistas, eles hoje não
estariam dando trabalho para a nação. Emendou um jovem fantasiado de Harry
Potter.
Um viking ruivo, barbudo, trazia na camiseta a frase 100% BRANCO
e um cartaz contra as cotas nas universidades. O senhor é contra as cotas,
perguntei?
O senhor é a favor, respondeu-me com uma pergunta cheia de ódio.
Tem algum negro aqui? O senhor ta vendo algum negro aqui. Os negros são todos
comunistas, Cuba é um país de negros, em Angola os negros comunistas tomaram o
poder, Mandela é comunista, Obama é um desgraçado comunista...
Me diga uma coisa, o viking parecia espumar pela boca, o senhor
seria atendido por um médico negro, um médico cubano? Aqueles desgraçados
comunistas que não tomam banho.
A namorada de cabelos vermelhos, toda tatuada, chamou o viking
racista para tirar uma selfie com uma loira jovem fantasiada de Estátua da Liberdade.
Pelas barbas de Bin Laden, pensei.
A senhora quer provar o ceviche, Lena perguntou para uma
senhorinha de echarpe, ventarola, óculos Prada e cartaz pedindo Morte a Dilma.
Coisa chique.
Ceviche não é aquele prato da Venezuela, ou de Cuba? Não, senhora,
é peruano, disse Lena com seu fenótipo inca. Mas o Peru também não é comunista,
não é o país daquele índio, Gonzales ou Morales, como é mesmo o nome?
A senhora vai adorar nossa coxinha, cortei a conversa. Tem
coxinha? Claro que quero, meu filho; eu sou coxinha. kkkkkkkk; gargalhou
smartphonicamente.
O pessoal foi se juntando e seguindo o truck, muitas camisas da
CBF, instituição corrupta até a medula.
Um jovem com a camiseta do Neymar, o craque metido em
maracutaias, trazia um cartaz contra a corrupção.
Ao pegar sua coxinha com Coca-Cola pespegou: enquanto aqueles
lixos esfomeados marcham por um pão com mortadela, a gente compra o nosso
próprio lanche, porque aqui é elite, meu irmão. chupa comunistas.
Gritou hashteguicamente.
Em certo momento, me empolguei com aquela euforia toda e botei
uma música do Lobão pra tocar, Vida Bandida: uma multidão passou a seguir o
truck fazendo coreografias.
Virou uma espécie de food truck elétrico.
Em coro gritavam em volta do caminhão: coxinha, coxinha,
coxinha...
Eu estava me sentindo uma espécie de Bel Marques do midiotas.
Uma socialite me convidou para fazer o catering de sua festinha
particular, um senhor queria saber a receita da coxinha de ossobuco, o outro
perguntava se eu queria vender o truck.
Vi que tava na hora de sair fora.
Essa cínica Rave Cívica é um circo com animais. bem alimentados,
bem vestidos, bem empregados, do que essa gente tem ódio? o que perderam, o que
deixaram de ganhar?
É tudo um teatro absurdo, uma ópera bufa: a madame vai à varanda
e bate panela, depois senta-se no sofazão retrátil e vai ver a novela.
Texto originalmente publicado no site Brasil247;
http://www.brasil247.com/pt/colunistas/leleteles/193395/O-dia-em-que-vendi-coxinhas-na-manifesta%C3%A7%C3%A3o.htm
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