ENTRE O EVANGELHO E A IDEOLOGIA
O desafio de dialogar com o conservadorismo cristão, quando a fé é reduzida a bandeira eleitoral da política.
Nos últimos anos, tornou-se evidente uma grave distorção no debate religioso brasileiro: muitos setores conservadores da Igreja católica, passaram a defender posições políticas, morais e sociais a partir de uma leitura ideológica e imediatista, esquecendo-se de que a fé cristã é, antes de tudo, mistério, encontro e compromisso com a vida.
Pior ainda, se alinharam ao que tem de mais perverso, deturpador e antagônico à fé cristã do meio dos piores setores do neo pentecostalismo evangélico. Antes diziam que falavam em nome de Deus, agora, agem em nome de mitos e ideologias extremistas, buscando um passado de triste memória, onde pensar diferente, significava ter um terrível encontro a tortura e a morte, e numa terrível prática de busca pelo poder eleitoral onde se aliam com o que tem de pior no mundo da política.
O que se observa em setores deste conservadorismo católico é um fenômeno preocupante: a substituição da reflexão teológica, filosófica e sociológica por discursos rasos, guiados por “opiniões” e “memes” que nada têm de evangélico.
O Evangelho é reduzido a um instrumento de guerra cultural. Cristo é transformado em símbolo de uma cruzada contra inimigos imaginários, O que tem na palavra comunista, uma tara comparada aos piores desejos humanos. E o amor ao próximo dá lugar a um moralismo que exclui, julga, fere e quando isso não satisfaz, mata!
O esvaziamento do pensamento: quando a ideologia ocupa o lugar da teologia
A tradição cristã, desde os Padres da Igreja, sempre entendeu que a fé precisa caminhar com a razão. Santo Agostinho dizia: “Crê para compreender, compreende para crer melhor.” Na mesma linha, São Tomás de Aquino ensinava que a razão é caminho para conhecer a verdade divina, e que a fé não se opõe à busca intelectual — ao contrário, dá a ela plenitude.
Por isso, quando um cristão se recusa a pensar, dialogar, ou ler os sinais dos tempos, ele trai o próprio espírito do Evangelho. Muitos conservadores hoje rejeitam a teologia, o magistério social da Igreja e até as palavras dos Papas, quando alguma destas palavras contrariam suas perspectivas político-ideológicas, porque temem perder o conforto de suas certezas. Mas fé sem reflexão é superstição; e religião sem caridade é ideologia.
A inversão da mensagem evangélica
O conservadorismo religioso destes tempos sofre de um problema grave: confunde o Evangelho com o privilégios.
Em vez de denunciar as estruturas de pecado e do tal mercado, que geram fome, desigualdade e exclusão, defendem a manutenção dos privilégios que deveriam rejeitar. Em vez de proclamar “felizes os pobres”, tenta convencer os pobres de que a pobreza é sinal de falta de fé.
Essa inversão é exatamente o que Jesus enfrentou em seu tempo. Os fariseus e doutores da lei eram homens religiosos, zelosos da moral e da liturgia, mas cegos à dor do povo. O Cristo libertador os confronta dizendo: “O sábado foi feito para o homem, e não o homem para o sábado.” (Mc 2,27). Ou seja: a lei, para os cristãos e cristãs deve estar a serviço da vida, não o contrário.
A fé encarnada: teologia, filosofia e sociologia do amor
A Teologia da Libertação, tão atacada pelos conservadores, é na verdade a expressão mais fiel do método cristão: ver, julgar e agir à luz da fé.
Ela não é marxismo disfarçado, como dizem os ignorantes; é a atualização da encarnação de Cristo na realidade histórica dos pobres e excluídos. É uma leitura do Evangelho feita com os olhos do povo crucificado.
O olhar teológico se abre ao filosófico e ao sociológico: compreender o homem, suas estruturas, suas dores e esperanças.
A fé que não reconhece seu tempo e lugar é uma fé morta.
Como dizia Paulo VI na Evangelii Nuntiandi: “A ruptura entre Evangelho e cultura é sem dúvida o drama de nosso tempo.” Por isso, a missão da Igreja não é doutrinar pelo medo, mas iluminar pelo discernimento.
O problema do conservadorismo atual não é a defesa de valores — toda sociedade precisa de referências éticas —, mas o fato de que esses valores são retirados do contexto do amor e da justiça. Defende-se a “família”, mas se ignora a fome das famílias.
Defende-se “a vida”, mas se despreza a vida real dos pobres, das mulheres e das crianças em situação de vulnerabilidade.
Defende-se “Deus”, mas se nega o Deus dos pobres e se adora o bezerro de ouro do mercado ou mentirosos travestidos de moralistas
Essa contradição é o fruto de uma fé capturada pela lógica do poder e não pela lógica da cruz. Pouca coisa se aplica melhor ao contexto da palavra má-fé do que esta prática do uso do nome de Deus para acessar riqueza, poder, privilégios com tanta hipocrisia.
É a mesma tentação que Jesus enfrentou no deserto: transformar pedras em pão para impressionar as massas, pular do alto do templo para exibir poder, ou ajoelhar-se diante do império para dominar o mundo. Cristo recusou todas. O conservadorismo as aceita de bom grado.
Caminhos de diálogo e superação
O diálogo com o conservadorismo é difícil — mas necessário.
Não se vence o obscurantismo com desprezo, e sim com paciência, escuta e testemunho. O primeiro passo é resgatar o método do discernimento comunitário: refletir juntos a partir da Palavra, da realidade e do magistério da Igreja.
A imensa maioria das pessoas que seguem este modelo de religiosidade são pessoas de boa-fé que acreditam que este caminho proposto é o caminho que os levará a salvação. Sou inocentes úteis nas mãos de verdadeiros lobos que nem se preocupa mais em por vestes de cordeiro.
O segundo passo é formar: voltar a buscar ânimo e recuperar o gosto pela teologia, pela filosofia, pela leitura da história. Se prontificar e se preparar para contribuir com o diálogo dentro da igreja e não ficar do lado de fora pestanejando e dizendo que "no meu tempo não era assim!"
E o terceiro é mais importante passo é testemunhar: viver o Evangelho com coerência, de modo que a prática fale mais que os discursos. Ser solidário não pode ser uma palavra vazia. Tem que vir com a prática dos que mais do que falam, faz!
Como dizia Dom Hélder Câmara: _“Quando dou pão ao pobre, me chamam de santo. Quando pergunto por que o pobre não tem pão, me chamam de comunista.” Na história do cristianismo, somente a prática de solidariedade e de amar como Jesus amou, conduz a conversão real e indissolúvel com Deus.
Essas premissas resumem o abismo entre fé viva e ideologia morta. A missão dos cristãos libertadores é manter viva essa provocação.
Por uma Fé libertadora, não domesticada
A Igreja de Jesus não é de direita nem de esquerda. Ela é, por essência, profética e libertadora. Não se ajoelha diante de impérios, mas diante dos crucificados da história.
O que separa o cristão libertador do conservador não é o credo, mas o olhar: um vê o Cristo glorioso no céu; o outro o reconhece também no rosto dos pobres da terra e daqueles que não abriu mão da coerência que o próprio Cristo viveu e não fogem da Cruz quando esta nos parece uma ameaça.
O verdadeiro cristão sabe que o Reino de Deus não é uma ideologia, mas uma revolução do amor — silenciosa, paciente e transformadora.
E quem realmente o compreende, não teme a política, porque sabe que política, na sua raiz mais profunda, é cuidar da casa comum e lutar para que todos tenham vida e vida em abundância (Jo 10,10).
Toninho Kalunga

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