AS RAÍZES INSURGENTES DA TEOLOGIA DA LIBERTAÇÃO: HISTÓRIA, RESISTÊNCIA E ESPIRITUALIDADE POPULAR


A Teologia da Libertação (TdL) não surge como um tratado, nascido em alguma academia universitária do mundo europeu, nem como uma elaboração de algum gabinete cardinalício sediado em Roma. Ela nasce dos sofridos subsolos históricos da América Latina: da opressão colonial, da violência das ditaduras, da dependência econômica do capitalismo cruel e da resistência cotidiana dos povos pobres.


É impossível compreender a TdL sem olhar para cinco séculos de luta dos indígenas quase dizimados, dos africanos escravizados, das famílias camponesas exploradas. É desta mistura de povos excluídos que brota uma fé inquieta, que não sincretiza religiões, mas delas bebe da sabedoria que aprendeu a ouvir a voz de Deus, não pelos ouvidos, mas pelo coração. 


Assim, a Teologia da Libertação é fruto das comunidades que transformaram sua dor em consciência, sua fé em organização e sua espiritualidade em rebeldia, pois os senhores podiam maltratar e martirizar seus corpos, mas permanece impossível impedir que Deus faça nascer, no meio deles, a certeza de Sua presença — na sabedoria dos velhos, na coragem dos que recusam a servidão, na força que levanta os caídos e na esperança que não paralisa, mas age. Uma esperança que é o Verbo encarnado na luta, que transforma a substância do que era escravidão, em libertação definitiva. Do mesmo modo que a água foi transformada em vinho. 


E essa certeza é tão profunda que nem a morte — único instrumento em que os poderosos imaginam encontrar autoridade definitiva — consegue deter a vitória histórica dos oprimidos sobre seus opressores, pois a partir da cruz do Deus cristão, a última palavra não é mais a morte e sim a Ressurreição, que deriva da esperança, que ao contrário do que o verbo propõe em parar para esperar, se transforma em substantivo que impulsiona a seguir.


Por isso, a compreensão sobre fé, da TdL confunde e tanto incomoda as elites imperiais e coloniais, sejam elas religiosas, financeiras, do agronegócio, das indústrias ou dos impérios mídiaticos.


A América Latina e África são tratadas como território de exploração, fornecedoras de riqueza mineral e mão de obra barata. Mas, apesar de terem conseguido massacrar corpos, jamais conseguiram destruir o espírito de resistência que percorre nossas histórias


1.TEOLOGIA DA LIBERTAÇÃO: UMA ORIGEM QUE VEM DE ANTES DO NOME


Antes de Medellín.

Antes de Gutiérrez.

Antes de Boff.

A raiz profunda da TdL está na espiritualidade dos povos escravizados, que cantavam sua liberdade mesmo acorrentados; nos povos indígenas, que mantiveram sua dignidade mesmo diante de massacres; nos degredados e pobres europeus, que chegaram ao continente expulsos de seus próprios países e tornaram-se parte do povo oprimido. A TdL, portanto, não começa nos livros. Começa com o surgimento do que hoje chamamos de América Latina.


Ela é o sopro de resistência que atravessou senzalas, quilombos, aldeias, roças, periferias, e fábricas. É a fé reinterpretada pela base, num movimento capaz de sobreviver às estruturas de morte impostas pelo colonialismo e pelo capitalismo dependente.


2. A AMÉRICA LATINA COMO CHÃO TEOLÓGICO


A TdL pôde nascer porque o Cristianismo europeu — estruturado, hierárquico e tantas vezes cúmplice da opressão — ao chegar à América Latina foi forçado, no decorrer da história, a se misturar com a ancestralidade indígena e negra. Dessa fusão inédita, onde três mundos espirituais se encontram pela primeira vez, emerge uma nova consciência do Evangelho. 

A realidade latino-americana não apenas impôs à fé uma pergunta incontornável; ela reuniu, num mesmo chão, três fontes de sabedoria que jamais haviam caminhado lado a lado: a ancestralidade negra, com sua profundidade comunitária e resistência espiritual; a ancestralidade indígenda, com sua cosmovisão integral e respeito sagrado pela terra; e a tradição cristã ocidental, com sua estrutura, linguagem e capacidade de instrução. 

Foi dessa pregação do Evangelho, atravessada por memórias milenares, que explodiu a pergunta que nenhum teólogo europeu formularia a partir de biblioteca alguma: como anunciar a Boa-Nova num continente marcado pela fome, pela violência e por uma desigualdade estrutural que crucificava — e ainda crucifica — os excluídos todos os dias?


Essa pergunta atravessa séculos e continua sendo feita e respondida ao mesmo tempo. É ela que empurra a Igreja, inexoravelmente, a trilhar o caminho do martírio e da ressurreição. E quanto mais esse processo de denúncia, perseguição, entrega e renascimento se repete, mais a Igreja se aproxima da profecia de ser um só povo — reconciliado na justiça, unido na dignidade e enraizado no sonho de Deus para os pobres da terra.


A Rebelião Espiritual que se Torna Consciência Histórica

A Teologia da Libertação não nasce como teoria abstrata. Ela nasce como rebelião espiritual organizada — e é justamente por isso que incomoda, desestabiliza e amedronta os poderes deste mundo. Quando a fé recusa ser ornamento e passa a ser caminho de libertação, a estrutura opressora treme.

A memória dos mártires é uma inspiração que brota no coração do povo e que sempre surpreendeu a elite. A intenção dos poderosos sempre foi calar, impedir que a palavra profética criasse raízes: primeiro pelo medo que paralisa, depois pela dor que desmobiliza e, quando isso não basta, pela eliminação física daqueles que denunciam a injustiça.

Mas aquilo que os poderosos fazem para apagar uma vida, o povo transforma em memória subversiva. A voz que tentaram sufocar volta mais forte como sinal do Reino. O corpo ferido se converte em profecia. A morte calculada para silenciar se torna fonte de consciência e gratidão sagrada.

Foi exatamente isso que a TdL compreendeu de modo ainda mais profundo ao reler a Paixão de Cristo: seu julgamento, sua condenação, seu martírio e sua morte de cruz. Nada ali foi acaso. Tudo foi arquitetado por aquilo que hoje chamamos de elites — políticas, econômicas e religiosas. Basta olhar com honestidade para saber quem estava contra Jesus e comparar: o sinédrio aliado ao poder romano, a aristocracia religiosa que lucrava no Templo, os chefes que temiam perder privilégios e todos aqueles que não suportavam a liberdade que Ele anunciava aos pobres, às mulheres e aos marginalizados.

A TdL reconhece nessa injustiça e neste drama histórico o mesmo mecanismo que atravessou séculos no nosso continente: quando a consciência que busca a justiça nasce entre os pobres, os poderosos se organizam para sufocar a esperança. Por isso a TdL é uma rebelião que não se deixa domesticar:

  • nem pela força armada

  • nem pela repressão dos Estados autoritários,


  • nem pelo moralismo religioso que tenta controlar consciências.


Ela nasce justamente onde os poderes não conseguem tocar:

  • na consciência despertada do povo,


  • nas redes comunitárias que sustentam a vida,


  • na leitura popular da Bíblia que transforma Palavra em ação,


  • na organização resistente das Comunidades Eclesiais de Base.

A força da TdL é que ela não é doutrina de gabinete, mas experiência coletiva de fé e luta. Ela brota não na frieza da teoria, mas na roça, na favela, nos acampamentos, nas cozinhas onde o pão e a Palavra são partilhados.

A Teologia da Libertação não pertence aos teólogos: pertence às comunidades que a forjaram, e por isso não pode ser calada. Não é teoria importada: é processo histórico gestado na resistência dos pobres deste continente. É espiritualidade que vira consciência, consciência que vira organização, organização que dá rosto, voz e protagonismo ao povo — e povo mobilizado é sempre o pesadelo dos faraós de cada época.

E quando essa consciência nasce da fé, a morte deixa de ser ameaça. O instrumento de controle na mão do opressor se transforma em vitória do oprimido — água em vinho — porque nenhum poderoso pode derrotar uma memória martirizada. Ela se torna imortal na mesma esperança que moveu os seguidores de Jesus ao testemunharem Sua ressurreição.

4. POR QUE A ELITE NUNCA ENTENDEU A TDL. NEM VAI ENTENDER.

Para o poder econômico e político — local e internacional — a Teologia da Libertação sempre foi um enigma.

Eles nunca souberam como lidar com ela porque esperam da Igreja Católica aquilo que historicamente os serviu: uma estrutura vertical, previsível, com autoridades identificáveis, cadeias de comando rígidas e uma lógica organizacional mais parecida com o Estado e o mercado do que com o Evangelho.

No imaginário das elites, a Igreja é um organismo disciplinado, facilmente administrável:

Basta influenciar seus chefes, negociar com suas cúpulas, vigiar suas instâncias, regular seus movimentos.

É assim que os poderosos entendem religião: como algo que pode ser controlado, direcionado, cooptado. Assim, as elites se aproximam da Igreja não pela fé, mas pela conveniência.

Doam um bezerro ou uma pequena moto para o leilão da paróquia na vinda do bispo e, de quebra, promovem o fazendeiro-candidato como se ele tivesse doado a fazenda inteira.

Pagam o show (com dinheiro público) de uma dupla sertaneja que menciona mais o prefeito do que o padroeiro e transformam isso em moeda de influência.

Ajudam na reforma de um telhado ali, bancam um “presentinho” acolá, — e assim vão domando aqueles que um dia se declararam indomáveis.

É a velha lógica colonial:

  1. Quando o controlar pela força não funciona, buscam pela fraqueza interessada.

  •  Não evangelizam: domesticam.

 

  • Não partilham: compram.

 

  • Não servem: negociam.

E, é nesse jogo que boa parte dos nossos padres e lideranças pastorais se perdem — na ilusão de que pequenos favores são apoio pastoral, mesmo sabendo que na verdade são instrumentos de controle moral e político. 

Estes presbíteros e pastores que permitem isso, não o fazem por necessidade dos pobres, mas por seu próprio espelhamento político e ideológico que trazem consigo de forma mal disfarçada, com o comum discurso de que não gosta de política e que fé e política não se misturam! 

Mas quando são chamados a atenção pela hipocrisia do discurso, rasgam a máscara e dizem o fazer por um suposto combate ao comunismo, seja lá o que isso signifique! 

Mas adora se misturar com o dinheiro do capitalismo, oriundo da fama trazida pela relação com as elites locais.

E quando esses favores não atendem às expectativas dos catolicões endinheirados, os antes fervorosos filhos de Maria, correm para a igreja pentecostal ao lado, porque “bastando dar o dízimo certo pelo pedido errado, ali, tudo estará resolvido” — uma perversão da fé que a elite explora sem pudor. 

Ali não haverá doutrina social, pecado da usura, recomendação à conversão quaresmal nem caridade como medida penitencial. Somente dinheiro e poder e uma foto de um leão que, não raramente se torna a epifania e o santo da devoção da turma da catequese mal feita.

Mas, ao se depararem com a Teologia da Libertação, encontram o oposto absoluto:

  • Não encontram um movimento: encontram comunidades articuladas.


  • Não encontram um líder: encontram múltiplas vozes que emergem da base.


  • Não encontram comando central: encontram organização popular.


  • Não encontram documento oficial: encontram discernimento comunitário.

E é aí que entra a força do Magnificat:

“Deus confunde os poderosos e dispersa os soberbos de coração.”

 (Lc 1,51)

A TdL é a tradução histórica dissa que confunde os poderosos pois:

Inverte o fluxo do poder, desloca o centro, desarma a lógica de comando, põe os pequenos no protagonismo e devolve ao povo a capacidade de ler sua própria realidade e reinterpretar o Evangelho a partir da vida concreta.

Para as elites — políticas, econômicas e religiosas — isso é inaceitável, incompreensível e escandaloso, tanto que comumente somos chamados de heréticos. Por razões semelhantes, Jesus, os profetas e santas e santos também são assim denominados.

As elites esperam um clero que diga “sim”; encontram um povo que diz “basta”.

Esperam uma fé que mantenha a ordem; encontram uma fé que desestabiliza os ídolos de toda ordem. 

Esperam hierarquia; encontram horizontalidade viva.

Por isso a Teologia da Libertação é um enigma: 

  • Porque nasce onde o poder não tem acesso e se move numa lógica que o poder não compreende — a lógica do Reino, não a do controle. 


  • Deste modo, a teologia da Libertação é Horizontal, mas não desorganizada.


  • É Livre, mas não dispersa.


  • É enraizada nas periferias, não concentrada no centro.


  • Somos guiados pela inspiração do pelo ver, julgar e agir. Ver antes de julgar, julgar quando todos os elementos estiverem postos à luz e agir para não permitir que a opressão estenda sua escuridão sobre o povo.

Por isso,a TdL, sempre foi constituída, desde tempos imemoriais e construída nas mãos dos pobres e instruída pelo Espírito Santo que sopra onde quer.

Não há como desmantelar a TdL, pois ela é fruto daquilo que não tem chefe a ser comprado ou silenciado. 

Não somos uma Igreja que tem um dono ou presidente ou algo que o valha, cuja morte esfacela a relação da hierarquia de poder e o que sobra é uma tremenda briga pelo espólio e quem dominará a corrupção herdada.

Não há como controlar aquilo que cresce de baixo para cima. O que hoje parece ser forte, pois tem nome de fundador e milhares e milhares de seguidores, amanhã se torna causa de escândalo e inimizade familiar que querem perpetuar o poder e não o Evangelho. 

Não há como exterminar uma fé que se tornou consciência crítica e se inspira num Deus que se fez carne e habitou entre nós — um Deus cujo critério de aproximação é exatamente o contrário do que as teologias da prosperidade e do domínio proclamam.

  • Enquanto essas teologias anunciam acúmulo, privilégios e “vitórias pessoais”, Jesus, tanto em Mateus 19,21 quanto em Marcos 10,21, aponta para o desapego radical: “vai, vende tudo o que tens, dá aos pobres e depois vem e segue-me”.

  • O critério de Jesus não é ter, é despossuir-se; não é acumular, é partilhar; não é subir ao topo, é descer até os últimos.

  • Por isso essas teologias estão fadadas ao fracasso e à fragmentação — são reinos construídos sobre si mesmos, e um reino dividido não subsiste.

  • A TdL floresce justamente onde o poder acreditava que jamais haveria iniciativa: na base e não no líder da denominação A, B ou C.


FINALMENTE: UMA TEOLOGIA QUE É HISTÓRIA E ESPÍRITO


A Teologia da Libertação pode ser resumida assim:


  • é o encontro entre a dignidade negada e a espiritualidade libertadora.

  • Nasce das lutas históricas dos pobres.

  • Alimenta-se da memória de resistência de negros, indígenas e camponeses pobres 

  • Confronta as estruturas econômicas que produzem miséria.

  • Questiona o poder religioso quando ele se alia ao opressor.

  • E transforma fé em compromisso, Bíblia em ação e comunidade em sujeito histórico.

Por isso, a TdL não é apenas uma teoria. É uma postura diante da vida, um jeito de ver o mundo, uma ética de combate — e, sobretudo, uma esperança ativa.


NÃO HÁ OUTRO CAMINHO PARA SER IGREJA CRISTÃ, QUE NÃO SEJA ESTE!

Quando o jovem teólogo Joseph Ratzinger afirmou, entre 1969 e 1970, nas transmissões de rádio na Alemanha, que a Igreja do futuro seria “pequena e unida”, ele falava como um homem inquieto diante do colapso da cristandade europeia e do impacto do Concílio Vaticano II. 

Ratzinger, não era ainda o guardião da doutrina, mas um pensador buscando compreender o que o Espírito dizia à Igreja num continente que perdia a fé institucional. 

Sua intuição era verdadeira, mas incompleta: ele percebeu que a Igreja diminuiria em poder e prestígio, mas não tinha ainda os elementos para entender que seu renascimento viria das periferias, das CEBs, dos pobres organizados e da espiritualidade encarnada que pulsa fora dos palácios. 


Décadas depois, ao renunciar sabiamente ao papado, ele próprio reconheceu os limites de sua visão e abriu conscientemente o caminho para que aquele mesmo sopro do Espírito, que o inspirou a ver uma Igreja pobre e humilde, fosse mostrada, não a partir da europa, mas da Igreja latino-americana, misericordiosa e comprometida com os pobres — conduzisse o barco. 


Essa passagem de bastão deu nome e rosto à sua profecia e assim o mundo foi apresentado à Francisco. E, de fato, Ratzinger assimilou e Bento XVI entedeu: 

A Igreja será pequena, formada por pequenas comunidades, solidárias entre si e com as outras, gentis, livres do poder humano e cheia de humanidade. 

Será tecida pela força de modelos próprios em cada cultura e saber, de Comunidades Eclesiais de Base, espalhadas pelo mundo, que não poderá ser medida pelo tamanho de tão enraizada e em incontáveis células, mas pela coerência com o Evangelho que despertarão no povo. Essa é a Igreja que está nascendo com a Teologia da Libertação !




Toninho Kalunga

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