VAMOS FALAR SOBRE SEGURANÇA PÚBLICA ?

Vamos falar sobre violência e segurança pública?

Por: Toninho Kalunga 

Precisamos urgentemente estabelecer um ponto de inflexão no debate sobre Segurança Pública. Estamos correndo o risco real de nos desconectarmos da experiência concreta do povo das favelas, desse chão onde pulsa a vida ferida e resistente dos pobres que o Evangelho nos chama a servir.




Refletir é necessário. Entretanto, mais que refletir, precisamos compreender o sentido profundo dessa ruptura perceptiva entre a sensibilidade da classe média progressista e a percepção popular das periferias sobre a mesma realidade. Quando 80% de um segmento social compartilha uma leitura comum sobre um tema, não se pode ignorar o que está sendo dito. O problema não está necessariamente na maioria, mas em quem se encontra deslocado da experiência coletiva.


Evidente que nosso horizonte ético nasce do Evangelho e da Doutrina Social da Igreja. Sonhamos com uma sociedade de paz, onde os bens da terra sejam partilhados com justiça, e onde toda criação de Deus viva em harmonia. Contudo, para que esse sonho se torne história concreta, precisamos dialogar com a realidade e não apenas com nossa idealização dela.


Lembremos a pergunta genial de Garrincha, ao receber instruções sobre como furar a defesa soviética: “Você combinou com os russos?” Nós, muitas vezes, não combinamos com os “russos” que habitam os becos e vielas das periferias brasileiras. Ali, um poder paralelo estabelece normas, disciplina, julgamentos e penalidades. Um código moral e funcional, cruel e, ao mesmo tempo, reconhecido como presença e autoridade.


Existe uma ordem que nasce do caos, um mundo paralelo onde o Estado oficial não é mais que um simulacro. Ali, um poder concreto governa, regula e decide. Essa lógica produz uma solidariedade ambígua, que acolhe e oprime, protege e destrói, inclui e silencia.


Nesse cenário, o povo pobre se vê entre dois poderes: o Estado jurídico, muitas vezes omisso, distante e seletivo, e o poder real, que dita as regras do cotidiano. O primeiro é formal, o segundo é eficaz. O primeiro proclama direitos, o segundo garante sobrevivência, ainda que pelo medo e pela violência.


O ponto é que o estado além de ausente, é também conivente! Ele é visto, como vemos uma montanha! Ele está lá, mas sua distância é tão gigantesca quanto seu tamanho e só é comparável em grandeza quando a juventude - que nunca viu sua face - lhes são mutuamente apresentados pela porta traseira de um camburão ou do rabecão!

Este é, para a maioria dos jovens que são acolhidos pelo crime o único momento em suas vidas que o estado lhes foi eficaz!

O estado falhou quando ficamos doentes, quando precisamos de uma vaga na creche, na escola e na formação universitária! Mas é completo quando a polícia lhes tira a liberdade ou a vida!


O que sobra é a pseudo proteção do crime. E desta ninguém escapa, pois ela é a presença constante, cotidiana e límpida. Não disfarça como a presença inoperante do estado na escola precária e no posto de saúde sem médico ou na quadra sem condições de praticar um esporte!


O crime é eficaz na solução de conflitos, no apaziguamento por meio da ameaça e quando esta não funciona, resta a morte! Mas é também alentador quando distribui o remédio e a cesta básica ou garante a balada para a diversão e cultura todos tão ausentes por parte do estado! A expressão PAX ROMANA é a única coisa que os moradores da favela encontram similaridade na ação do BOPE e do crime! 


Quando falamos sobre segurança pública a partir do nosso lugar social, muitos moradores das favelas nos escutam e pensam, em silêncio, como Cristo no alto da cruz: “Eles não sabem o que fazem...” Ou, no caso, o que dizem. Não porque sejamos insensíveis, mas porque, por vezes, estamos tão distantes desse cotidiano quanto Shrek e o Burro estavam de “Tão, tão distante”.


As pesquisas ecoam esse abismo. Elas falam de dores e percepções que o nosso discurso nem sempre alcança. Defender a justiça social exige não apenas fidelidade ao Evangelho, mas compreensão madura da realidade concreta do povo e das forças que o oprimem.


Se queremos libertar o povo das garras dos opressores, precisamos atingir quem está fora da favela exercendo violência de outra forma: os donos do capital financeiro, os operadores da guerra econômica, os senhores das fintechs e dos fundos, os cúmplices silenciosos das milícias, os que frequentam varandas gourmets e bebem vinhos de vinte mil reais enquanto financiam a destruição da vida pobre.


As chacinas do Rio de Janeiro não servem para combater o crime. Servem para proteger os verdadeiros criminosos, de mãos macias e colarinhos engomados, que se autoproclamam “homens de bem” enquanto pisam sobre sangue inocente.


Ou enfrentamos politicamente, juridicamente e espiritualmente esses senhores da morte, ou preparemo-nos: eles continuarão governando o Rio de Janeiro e São Paulo, e tentarão retomar o governo federal. E, quando voltarem, apontarão mais uma vez suas miras para nós, para o povo pobre e para qualquer um que ousar anunciar justiça, como o Evangelho nos manda.


Que nossa luta seja lúcida, profética e encarnada no chão do povo. A fé cristã não nos permite neutralidade diante da injustiça. Devemos ouvir, compreender, amar e caminhar com o povo real, não com a projeção idealizada dele.


Porque só assim o Reino de Deus terá carne, voz e território na história.


Toninho Kalunga 


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