Dudu é um amigo que esta no Chile fazendo mestrado, foi dirigente na Pastoral da Juventude e havia ido para o Chile na última sexta feira, na quinta feira nos despedimos dele em Guarulhos, abaixo segue parte do email que ele enviou para um grupo de amigos.
Olá,
respondendo rapidinho porque esta dificil acesso a tudo - comida, agua, luz, telefone e internet... mas estou bem dentro do possível...
quando der, escrevo mais, depois dos temporais...
forte abraço, Dudu
O Haiti é aqui
Na madrugada do dia 27 de fevereiro o território chileno foi sacudido por um intenso terremoto, um abalo fortíssimo registrado pouco depois das 03:30 horas, que deixou centenas de milhares de residências comprometidas em sua estrutura, sem eletricidade, água e problemas de abastecimento. Nesse momento ainda não é possível precisar o número de desaparecidos, feridos ou mortos, nem contabilizar os prejuízos. Passado o forte abalo, minutos depois, as ruas foram tomadas pelas pessoas, temerosas de que a estrutura de suas casas e edifícios viesse ruir. Ao barulho de sirenes e alarmes somou-se o pranto, resultado do susto e do medo: da incerteza, do trauma, do futuro.
As primeiras notícias enviadas pela radio Biobío – a única a transmitir as informações durante toda a madrugada – anunciava uma catástrofe sem precedentes no país andino, já que especulava-se que a intensidade seria de 9 pontos na escala Richter (no Haiti foi de 6,3). Por volta de 30 minutos depois – 23 a mais do que o indicado neste tipo de situação – o governo se pronunciou oficialmente chamando a população à calma e à serenidade, ao lembrar que vivíamos em um país desenvolvido e preparado contra tal infortúnio. O Haiti não é aqui.
O atual governo - lento, inerte, sonolento e desacreditado – características típicas de fim de mandato derrotado nas urnas, divulgou nos dias subseqüentes uma série de informações desencontradas e sem efeito prático na sociedade: afirmou inicialmente que o número de mortos não deveria ser “muito maior que os 100 primeiros confirmados” – até o momento foram registrados mais de 700; a ONEMI (órgão que tem por finalidade única e exclusiva intervir em momentos de catástrofes) afirmou hoje, por meio de sua coordenadora, não saber ao certo o número de pessoas capacitadas; uma única divergência quanto às ações a ser tomadas acerca da possibilidade real de um tsunami chegar à região litorânea mais pobre do centro-sul: apenas este vacilo pode ter ceifado mais do que o dobro de vidas da estimativa inicial; o governo relutou em decretar oficialmente estado de catástrofe – preferiu eufemisticamente a princípio o termo “região de catástrofe” – e não acionar o exército para que assumisse o controle de comando. Recuou por fim, vencido, nomeando três generais para o comando das ações emergenciais.
A demora não é em vão. Fechado o ciclo de vinte anos de democracia delegativa sob o governo da chamada Concertación, a atual presidente, recordista em índices de aprovação, verá o seu governo terminar (no próximo dia 11), sendo protagonizado por militares. Aparentemente um detalhe, mas uma tragédia sem precedentes para uma autobiografia vaidosa. A sociedade assiste atônita ao desencontro e as divergências entre o governo atual, o governo eleito e o poder de fato dos militares. A cada entrevista concedida pelo presidente eleito, uma resposta em cadeia nacional do atual do governo. Obviamente, uma catástrofe de tamanha proporção requereria um esforço conjunto. Prevalece a cultura política latino-americana, tacanha por natureza.
O sistema de comunicação está colapsado. Falta energia elétrica em muitos lugares, o sistema de telefonia não funciona em muitos outros. Familiares distantes tentam estabelecer contato através da radio. O próprio governo reconheceu sua inércia e ineficácia em manter uma comunicação fluída no interior de sua equipe de (des)inteligência. A informação aqui veiculada que o presidente Lula teria tentado diversas vezes falar com a presidente, sem êxito, virou motivo de chacota. Ao ser questionado a respeito do tema, um alto escalão do exército afirmou que o sistema de comunicação dos militares não havia apresentado nenhum problema – poucas horas depois do terremoto falei com minha mãe por telefone. Deveria ter ligado em Brasília também.
“Remova as bases elementares da vida civilizada, organizada – comida, abrigo, água potável, um mínimo de segurança pessoal e em questão de horas voltaremos ao estado de natureza hobbesiano, à guerra de todos contra todos”. (Timothy Garton Ash).Talvez fosse mais prudente lembrar a interpretação que fez Adorno a respeito das intuições de Freud, recordando que a civilização produz a anti-civilização e a reforça mutuamente. De qualquer maneira, já pululam por todo o Chile (mesmo em áreas pouco atingidas) saques e assaltos de todo o tipo. Alguns, senão justificáveis, ao menos compreensíveis: pais que relatam não ter leite para filhos de poucos meses, doentes sem remédios essenciais, e outros apenas oportunistas: gangues “famosas” invadindo casas sem energia, roubando os próprios vizinhos e lojas de departamentos, saqueando televisores de última geração, espalhando falsas informações e pavor na comunidade. Enquanto escrevo, da minha casa, as sirenes não cessam um só minuto. Não desci para saber o motivo.
Ao mesmo tempo, desde a manhã do sábado, nenhuma informação chega dos chamados bairros altos, destinados, como é de se supor, obviamente, a aquela famosa elite branca que se nega a abrir a bolsa. Para se evitar uma tragédia, é preciso primeiro acreditar em sua real possibilidade. Pode-se reduzir a verba orçamentária destinada a desassoreamento, limpeza de córregos, dutos de sucção. Pode-se fechar algumas comportas na Penha e evitar alagamentos do “Tatuapé pra frente”. Mas é preciso condenar o volume recorde de águas da chuva e o mau hábito de se jogar lixo nas ruas. Culpa-se Deus e o povo. E azar de quem vive em Guaianases, Jardim Romano, Pantanal… O Chile, país que aprendeu desde os tempos do general Augusto Pinochet a vender-se a si mesmo como modelo (neoliberal) de desenvolvimento para América latina, figurou no ano passado, em algum desses famosos rankings, entre os dez países mais desiguais do mundo e – pasmem! – entre os melhores IDH da América Latina. O futuro governo anunciou que se utilizará de 2% do Orçamento (previsto na Constituição) para ser utilizado imediatamente; o presidente Obama, esperança do mundo, se solidarizou e mandou a Hillary pra cá. Lula da Silva (como é conhecido por essas bandas) deve tá chegando por aqui – segundo meu pai, por telefone. Acho que ele disse isso tentando me tranqüilizar. Ou pra se tranqüilizar, não sei.
A população mais pobre e mais afetada teme pelo que virá e tem motivos de sobra para isso. Sabe que, passado esse momento de comoção inicial e solidariedade internacional, a vida volta ao normal – para os outros. Nós, os outros, voltaremos as nossas vidas normalmente, até uma próxima tragédia a nos assombrar. “Temos um volume mais do que suficiente de estratagemas sagazes os quais nos ajudam a evitar essas eventualidades horripilantes” (Zygmunt Bauman)
“Menos de três meses depois de o furacão Katrina arrasar Nova Orleans, a legislação de ajuda permanece adormecida em Washington e o desespero está crescendo entre as autoridades daqui, as quais temem que o Congresso e o governo Bush estejam perdendo o interesse por seu destino… O senso de urgência que estimulou a ação em setembro está escoando rapidamente”. (New York Times, 22 de novembro de 2005).
Miséria é miséria em qualquer canto. A população pobre mais afetada sabe – ou imagina – o que deve passar depois de algum tempo, passada a comoção inicial. Preferi citar Nova Orleans. Se falasse de Porto Príncipe seria muito óbvio. Afinal, o Haiti é aqui.
Em tempo:
- Estava dormindo na hora do terremoto. Acordei meio assustado e meio sem entender o que acontecia. A sensação e o barulho são indescritíveis. Para meio obvio dizer, mas é difícil reagir. Mais óbvio ainda dizer que parece uma eternidade e que você tem certeza que vai morrer.
Corri pra porta, instintivamente, para descer as escadas e sair do prédio (vivo no quarto andar). Pra minha surpresa, não tinha ninguém descendo nesse momento. Tudo muito escuro, muito barulho, gritos, choro… mas ninguém saindo.
Queria sair porque pensava no prédio desabando e eu no meio do sanduiche. Depois do tremor, as pessoas começaram a descer rapidamente, uma correria com gritos no meio da escuridão. Desci de bermuda e camiseta e fui pra rua, num frio desgraçado. Voltei depois pro apartamento pra buscar uma calça e uma blusa, sendo que a mala da viagem ainda tava fechada. Pareceu outra eternidade.
Por volta de 07 horas da manhã voltei pra casa, morrendo de sono e de cansaço, sem muita coragem – com muito medo na verdade. O radio já havia anunciado que o terremoto pode dar até um ano de réplica (abalos sísmicos, de intensidade variada, mas de duração reduzida). Tentei dormir, mas não conseguia, pois despertava a todo momento, com a sensação de tremor. As 07:30 acordei com forte abalo e, novamente, um puta barulho e gritos. Descemos todos novamente para a rua.
- Durante o sábado, os tremores ocorriam com uma freqüência de uma hora mais ou menos. No domingo já diminuíram consideravelmente. Diminuíram, não cessaram.
- Especialistas falam em estresse pós traumático. Não sei se tenho isso, acho que não. De fato, não durmo quase nada desde sexta feira. Pelo menos agora tenho uma bela desculpa para insônia.
- Moro num bairro formado basicamente por uma “classe media pobre”, estudantes universitários e uma grande massa de estrangeiros “desqualificados” – leiam-se bolivianos e peruanos – que vivem em cortiços. É um bairro antigo que já foi importante. Nas casas que outrora pertenceram à elite de Santiago, agora vivem diversas famílias. Diversas famílias dentro de uma única casa. Estima-se que 400 famílias de bolivianos/ peruanos estão condenadas. Algumas “brigadas solidárias” devem ser organizadas.
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